"FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO" no Concílio Vaticano II
Uma defesa do Vaticano II pelo Irmão Andre (bom amigo de Feeney) demonstrando como o Vaticano II defende a doutrina "extra Ecclesiam nulla salus" consistentemente.
O texto em inglês pode ser visto aqui.
INTRODUÇÃO
Um conhecido padre meu, que deixarei anônimo, certa vez escreveu:
"[O padre Feeney desempenhou] um papel involuntário ao levar a Igreja a um ponto de virada histórico e teológico – aquela carta do Papa Pio XII (Suprema haec sacra) registrando de maneira definitiva o reconhecimento de que pessoas de boa vontade fora da comunidade Católica Romana também podem alcançar a salvação para si mesmas... Na minha avaliação, este documento de Pio XII preparou o caminho para o Movimento Ecumênico na Igreja Católica e, de fato, para a teologia ecumênica declarada pelo Concílio Vaticano II."
Infelizmente, essa visão da "Carta do Santo Ofício" e do Concílio Vaticano II, ou seja, a ideia de que a "Carta" e o Concílio ensinaram que há salvação fora da Igreja Católica, é muito comum hoje em dia.
Permita-me citar o Pe. Karl Rahner, provavelmente o peritus mais influente no Concílio*:
“…Podem existir, e de fato existem, indivíduos que são justificados na graça de Deus, que alcançam a salvação sobrenatural aos olhos de Deus (e, além disso, também em relação a Cristo), mas que não pertencem à Igreja ou à cristandade como uma realidade histórica visível, por não terem sido tocados pela pregação do Evangelho em qualquer sentido concreto 'deste mundo' em nenhum momento de suas vidas. Nenhuma demonstração verdadeiramente teológica dessa tese pode ser extraída aqui das Escrituras ou da Tradição. Tal demonstração não seria fácil de realizar, pois o otimismo da salvação universal implicado nesta tese apenas gradualmente se afirmou na fé consciente da Igreja. Podemos traçar um percurso de desenvolvimento desde o otimismo em relação aos catecúmenos não batizados em Ambrósio, passando pela doutrina do baptismus flaminis e do votum Ecclesiae na Idade Média e no Concílio de Trento, até o ensinamento explícito nos escritos de Pio XII, no sentido de que até mesmo um votum meramente implícito pela Igreja e pelo Batismo pode ser suficiente.”
(Pe. Karl Rahner, S.J., “O Problema do Cristão Anônimo,” Theological Investigations, Volume XIV, The Seabury Press, Nova York, 1976, p. 283.)
A frase “…os escritos de Pio XII no sentido de que até mesmo um votum (‘desejo’) meramente implícito pela Igreja e pelo Batismo pode ser suficiente” não é uma referência totalmente precisa à "Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston". Pio XII, em seus próprios escritos, não ensinou que há salvação fora da Igreja; muito pelo contrário.
O padre Rahner prossegue falando sobre o Concílio Vaticano II:
"Foi declarado no Concílio Vaticano II que os ateus também não estão excluídos da possibilidade de salvação, embora aqui não tenha sido aplicada a distinção, até então geralmente aceita, entre ateísmo positivo e negativo, ou entre ateísmo de maior ou menor duração. Pois, quando consideramos a teologia oficialmente recebida sobre todas essas questões, que permaneceu mais ou menos tradicional até o Concílio Vaticano II, só podemos nos surpreender com o quão poucas controvérsias surgiram durante o Concílio em relação a essas afirmações de otimismo quanto à salvação, e também com quão pouca oposição a ala conservadora do Concílio apresentou nesse ponto, como tudo isso ocorreu sem qualquer preparação prévia ou grande alarde — apesar de essa doutrina ter marcado uma fase mais decisiva no desenvolvimento da consciência da fé da Igreja do que, por exemplo, a doutrina da colegialidade na Igreja, a relação entre a Escritura e a Tradição, a aceitação da nova exegese, etc."
(Rahner, Op. cit., p. 284.)
A alegação absurda do padre Rahner de que o Vaticano II ensinou que os ateus podem ser salvos dificilmente merece consideração; pode ser refutada com uma simples leitura do texto, mas dá uma ideia de até onde os liberais estão dispostos a ir em suas falsas alegações sobre o Vaticano II.
Tais afirmações são completamente contrárias ao espírito do Papa João, agora Beato João XXIII, que ele expôs em seu discurso de abertura do Concílio:
“O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz.
Essa doutrina abarca o homem inteiro, composto de alma e corpo, e a nós, peregrinos nesta terra, manda-nos tender para a pátria celeste. […]”
“É nosso dever não só conservar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente da antiguidade, mas também dedicar-nos com vontade pronta e sem temor àquele trabalho hoje exigido, prosseguindo assim o caminho que a Igreja percorre há vinte séculos.
A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito.
Para isto, não havia necessidade de um Concílio. Mas da renovada, serena e tranqüila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão, como ainda brilha nas Atas Conciliares desde Trento até ao Vaticano I, o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do « depositum fidei », isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral.”
(Os Documentos do Vaticano II, editado pelo Pe. Walter M. Abbot, S.J., e pelo Rev.mo Mons. Joseph Gallagher, America Press, 1966, pp. 713, 715.)
O Papa Paulo VI fez várias protestas valentes, mas inúteis, contra o que os liberais estavam fazendo com o Concílio. Um desses protestos foi emitido na Festa da Imaculada Conceição em 1966:
“E, ao professarmos este propósito de fidelidade ao que o Concílio nos ensina e nos prescreve, parece-nos necessário evitar dois possíveis erros: o primeiro é supor que o Concílio Ecumênico Vaticano II represente uma ruptura com a tradição doutrinal e disciplinar que o precede, como se fosse uma novidade tão radical a ponto de ser comparada a uma descoberta revolucionária, a uma emancipação subjetiva, que autorizaria o distanciamento — quase uma pseudo-libertação — daquilo que até ontem a Igreja ensinou e professou com autoridade.
Isso levaria, portanto, à proposta de novas e arbitrárias interpretações do dogma católico, muitas vezes extraídas de fora da ortodoxia inegociável, e à introdução de novas e desordenadas expressões nos costumes católicos, frequentemente inspiradas pelo espírito do mundo. Tal atitude não estaria em conformidade com a definição histórica nem com o espírito autêntico do Concílio, como o previu o Papa João XXIII.”
[…]
“E outro erro, contrário à fidelidade que devemos ao Concílio, seria ignorar a imensa riqueza de ensinamentos e a providencial fecundidade renovadora que dele nos vem. Devemos, com alegria, atribuir ao Concílio um valor de princípio, em vez de considerá-lo apenas uma conclusão.
Pois, se é verdade que, historicamente e materialmente, ele se apresenta como o epílogo complementar e lógico do Concílio Ecumênico Vaticano I, na realidade, ele representa também um ato novo e original de consciência e de vida da Igreja de Deus.
Um ato que abre à própria Igreja — para o seu desenvolvimento interno, para as relações com os irmãos ainda separados de nós, para o diálogo com os seguidores de outras religiões e com o mundo moderno tal como ele é, magnífico e complexo, formidável e atormentado — novos e maravilhosos caminhos.”
E, por fim, o Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em um discurso aos Bispos do Chile, também falou sobre o abuso do Concílio:
“É uma tarefa necessária defender o Concílio Vaticano II contra Mons. Lefebvre, reconhecendo-o como válido e vinculante para a Igreja. Certamente, existe uma mentalidade de visão estreita que isola o Vaticano II e que provocou essa oposição.
Há muitos relatos que dão a impressão de que, a partir do Vaticano II, tudo foi mudado e que o que o precedeu não tem valor ou, na melhor das hipóteses, só tem valor à luz do Vaticano II.
O Concílio Vaticano II não foi tratado como parte da tradição viva da Igreja, mas como um fim da Tradição, um novo começo a partir do zero. A verdade é que esse Concílio, em particular, não definiu nenhum dogma e deliberadamente escolheu permanecer em um nível modesto, como um concílio meramente pastoral.
No entanto, muitos o tratam como se ele tivesse se tornado uma espécie de "super-dogma", que reduz a importância de tudo o que veio antes.”
[…]
“Tudo isso leva um grande número de pessoas a se perguntarem se a Igreja de hoje é realmente a mesma de ontem ou se a transformaram em algo diferente sem avisar ao povo.
A única maneira de tornar o Vaticano II plausível é apresentá-lo como ele realmente é: uma parte da Tradição contínua e única da Igreja e de sua fé.”
(Discurso proferido em Santiago, Chile, em 13 de julho de 1988. Publicado na edição de 30 de julho a 5 de agosto de Il Sabato e traduzido para o inglês por Farley Clinton para The Wanderer, em 8 de setembro de 1988.)
Examinemos o ensinamento do Concílio sobre a doutrina "fora da Igreja não há salvação", conforme contido em quatro de seus principais documentos, na ordem cronológica em que foram promulgados:
A Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium), promulgada em 21 de novembro de 1964;
O Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio), promulgado no mesmo dia;
A Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae), promulgada em 7 de dezembro de 1965;
O Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja (Ad Gentes Divinitus), também promulgado no mesmo dia.
1. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA SOBRE A IGREJA (Lumen Gentium)
No Capítulo 1:8 de Lumen Gentium, lemos:
“Esta é a única Igreja de Cristo, que no Credo confessamos ser una, santa, católica e apostólica; depois da ressurreição, o nosso Salvador entregou-a a Pedro para que a apascentasse (Jo. 21,17), confiando também a ele e aos demais Apóstolos a sua difusão e governo (cfr. Mt. 28,18 ss.), e erigindo-a para sempre em «coluna e fundamento da verdade» (I Tim. 3,5). Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.”
(Lumen Gentium 1:8, Concílio Vaticano II, editado pelo Pe. Austin Flannery, O.P., The Liturgical Press, Collegeville, Minnesota, 1975, p. 357.)
Os liberais, é claro, interpretaram a frase "A única Igreja de Cristo... subsiste na Igreja Católica" como significando que a "Igreja de Cristo" era uma entidade maior do que a Igreja Católica Romana. Por exemplo, o Relatório da Comissão Conjunta de Estudos Luterano/Católico Romano sobre "O Evangelho e a Igreja" afirmou:
"Do lado católico, aponta-se que não há uma identidade exclusiva entre a única Igreja de Cristo e a Igreja Católica Romana. Isso significa que a única Igreja de Cristo se atualiza de maneira análoga também em outras igrejas. Isso também significa que a unidade da Igreja Católica Romana não é perfeita, mas que ela busca a unidade perfeita da Igreja."
(Relatório da Comissão Conjunta de Estudos Luterano/Católico Romano sobre "O Evangelho e a Igreja", The Lutheran World, 19 (1972), pp. 270-271; citado em Frank Mobbs, "A Única Igreja Verdadeira segundo o Vaticano II", Homiletic and Pastoral Review, julho de 1985).
Mas uma simples leitura das relationes — as explicações oficiais que acompanharam os diversos rascunhos — mostra a falsidade dessa afirmação.
O primeiro rascunho desse trecho dizia: "A única Igreja de Cristo... é a Igreja Católica", mas, no segundo rascunho, o "é" foi alterado para "subsiste na".
A relatio explica o motivo da mudança:
"Certas palavras foram alteradas: em vez de 'é', foi usado 'subsiste em', para que a expressão esteja em melhor harmonia com a afirmação sobre os elementos eclesiais que estão presentes em outros lugares."
(Acta Synodalia Sacrosancti Concili Oecumenici Vaticani II, Typis Polyglottis Vaticanis, Roma, Vol. 1, pt. 4, p. 177; citado pelo Pe. James T. O’Connor, "A Igreja de Cristo e a Igreja Católica", Homiletic and Pastoral Review, janeiro de 1984, p. 15.)
Portanto, o "é" foi alterado para "subsiste na" não para indicar que a Igreja de Cristo é algo maior do que a Igreja Católica, mas para enfatizar o fato de que, embora existam "elementos eclesiais", como o sacramento do Batismo, fora da Igreja Católica, eles atuam apenas como "forças que impulsionam para a unidade católica".
Quando alguns bispos pediram que esse trecho específico fosse ainda mais esclarecido, a Comissão Teológica respondeu: "A necessidade da comunhão com a Igreja Católica está suficientemente indicada em todo o contexto."
(Acta, p. 35; citado em O’Connor, Op. cit., p. 21).
Claramente, a intenção do Concílio foi ensinar que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo e que ela é necessária para a salvação.
Com relação a esses “elementos eclesiais”, como o Batismo, que podem existir fora da Igreja, o Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis redintegratio), que foi promulgado no mesmo dia que Lumen Gentium, declarou:
“Ademais, dentre os elementos ou bens com que, tomados em conjunto, a própria Igreja é edificada e vivificada, alguns e até muitos e muito importantes podem existir fora do âmbito [vísivel] da Igreja católica […] Tudo isso, que de Cristo provém e a Cristo conduz, pertence por direito à única Igreja de Cristo.”
(Decreto sobre o Ecumenismo, 1,2, Pe. Austin Flannery, O.P., Vatican Council II, p. 455).
Finalmente, em 20 de março de 1985, uma “notificação” foi publicada pelo Vaticano, escrita pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Ratzinger, e aprovada pelo Papa João Paulo II, condenando um livro do teólogo brasileiro, Pe. Leonardo Boff:
“Para justificar esta concepção relativizante da Igreja — que se encontra na base das críticas radicais dirigidas contra a estrutura hierárquica da Igreja católica — L. Boff apela para a Constituição Lumen gentium (n. 8) do Concílio Vaticano II. Da famosa expressão do Concílio « Haec Ecclesia (se. única Christi Ecclesia) ... subsistit in Ecclesia catholica », ele extrai uma tese exatamente contrária à significação autêntica do texto conciliar, quando afirma: de fato, « esta (isto é, a única Igreja de Cristo) pode subsistir também em outras Igrejas cristãs » (p. 125). O Concílio tinha, porém, escolhido a palavra « subsistit » exatamente para esclarecer que há uma única « subsistência » da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visível existem somente « elementa Ecclesiae », que — por serem elementos da mesma Igreja — tendem e conduzem em direção à Igreja católica (LG 8). O Decreto sobre o ecumenismo exprime a mesma doutrina (UR 3-4), que foi novamente reafirmada pela Declaração Mysterium Ecclesiae, n. 1 (AAS LXV [1973], pp. 396-398).
A subversão do significado do texto conciliar sobre a subsistência da Igreja está na base do relativismo eclesilógico de L. Boff, supra delineado, no qual se desenvolve e se explicita um profundo desentendimento daquilo que a fé católica professa a respeito da Igreja de Deus no mundo.”
(U.S. Catholic Conference, Documentary Service, 4 de abril de 1985, Vol. 14; No. 42, pp. 685, 686.).
Lumen Gentium (1, 14) continua:
O sagrado Concílio volta-se primeiramente para os fiéis católicos. Fundado na Escritura e Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Se-nos presente no Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Baptismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do Baptismo. Pelo que, não se poderiam salvar aqueles que, não ignorando ter sido a Igreja católica fundada por Deus, por meio de Jesus Cristo, como necessária, contudo, ou não querem entrar nela ou nela não querem perseverar.
São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dós sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos. Não se salva, porém, embora incorporado à Igreja, quem não persevera na caridade: permanecendo na Igreja pelo «corpo», não está nela com o coração. Lembrem-se, porém, todos os filhos da Igreja que a sua sublime condição não é devida aos méritos pessoais, mas sim à especial graça de Cristo; se a ela não corresponderem com os pensamentos, palavras e acções, bem longe de se salvarem, serão antes mais severamente julgados.
(Lumen Gentium, 2,14, Flannery, pp.365,366.)
A próxima seção que citarei, Lumen Gentium 2, 16, é crucial para uma correta compreensão do Caso do Padre Feeney, porque contém uma nota de rodapé oficial referindo-se à “Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston” (Protocolo 122/49):
“Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna (33). Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida recta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho (34), dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida. Mas, muitas vezes, os homens, enganados pelo demónio, desorientam-se em seus pensamentos e trocam a verdade de Deus pela mentira, servindo a criatura de preferência ao Criador (cfr. Rom. 1,21 e 25), ou então, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, se expõem à desesperação final. Por isso, para promover a glória de Deus e a salvação de todos estes, a Igreja, lembrada do mandato do Senhor: «pregai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16,16), procura zelosamente impulsionar as missões.”
As duas notas de rodapé oficiais para esta passagem são:
33. Cfr. Carta do S. Oficio ao Arcebispo de Boston: Denz. 3869-72.
34. Cfr. Eusébio Ces., Praeparatio Evangelica, 1, 1: PG 21, 28 AB.
Não há menção nas relationes à “Carta do Santo Ofício”, mas o Concílio obviamente pretende chamá-la à nossa atenção. A passagem em Lumen Gentium à qual a nota de rodapé está anexada diz:
““Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna.'“
Esta passagem não é diferente do ensinamento do Beato Papa Pio IX, que examinamos em outro lugar (Cf. They Fought the Good Fight: Father Feeney 1950), mas os números de Denzinger da nota oficial, 3869-72, referem-se às duas passagens na “Carta” que o Padre Feeney considerou tão objetáveis:
“Pois para que alguém obtenha a salvação eterna não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro, mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo.
Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é aquele dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar sua vontade à vontade de Deus.” (Denz. 3870).
No entanto, há uma diferença significativa entre a “Carta” e Lumen Gentium; a expressão “desejo implícito” (votum implicitum) foi omitida. Essa expressão ambígua era extremamente objetável para o Padre Feeney e serviu, como vimos, como uma plataforma de lançamento para o infame conceito de “Cristianismo Anônimo” do Padre Rahner. Mas o Concílio diz, a respeito das pessoas de boa vontade envolvidas em ignorância invencível: “Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como ‘preparação para receberem o Evangelho.’”
A expressão “preparação para o Evangelho” (praeparatio evangelica), como nos informa outra nota de rodapé oficial, provém de uma obra famosa de Eusébio de Cesareia, um dos primeiros Padres da Igreja. O Concílio continua, afirmando que é a essas pessoas de boa vontade que a Igreja incessantemente estende seus esforços missionários. “Por isso, para promover a glória de Deus e a salvação de todos estes, a Igreja, lembrada do mandato do Senhor: «pregai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16,16), procura zelosamente impulsionar as missões.”
A relatio que acompanha este texto afirma que alguns dos Padres Conciliares, após lerem o primeiro rascunho desta seção, haviam solicitado que “o estado anômalo dos pagãos na era messiânica fosse mais fortemente expresso”, e que, neste rascunho, “essas solicitações são atendidas na última frase do texto corrigido e no parágrafo seguinte, referente às missões.” (Acta Synodalia Sacrosancti Oecumenici Vatican II, Periodus III, Relatio De n. 16(D), p.206).
Então “aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna” – mas não onde eles estão. “Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida. […] Por isso, para promover a glória de Deus e a salvação de todos estes, a Igreja, lembrada do mandato do Senhor: «pregai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16,16), procura zelosamente impulsionar as missões.”
Eu acho que, ao adicionar uma nota de rodapé oficial referindo-se à "Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston", a Igreja está nos dando uma interpretação ortodoxa e oficial desta tão abusada "Carta".1
Esta interpretação é uma que imagino que Orestes Brownson daria se fosse apresentado à “Carta.” Brownson escreveu: “Que aqueles em sociedades alheias à Igreja, invincivelmente ignorantes da Igreja, se correspondem às graças que recebem, e perseveram, serão salvos, não duvidamos, mas não onde estão, ou sem ser trazidos à Igreja. Eles são ovelhas na presciência de Deus Católicos, mas ovelhas ainda não reunidas no aprisco. ‘Outras ovelhas tenho,’ diz Nosso Bem-Aventurado Senhor, ‘que não são deste aprisco; A ELAS TAMBÉM DEVO TRAZER; ELAS OUVIRÃO MINHA VOZ; e haverá um só aprisco e um só pastor.’ Isto é conclusivo; e que estes devem ser trazidos, e entrar no aprisco que é a Igreja nesta vida, Santo Agostinho ensina expressamente.” (“A Grande Questão,” Brownson’s Quarterly Review, outubro de 1847).
Para concluir com Lumen Gentium (3:26):
“Em qualquer comunidade que participa do altar sob o ministério sagrado do Bispo , é manifestado o símbolo do amor e da unidade do Corpo místico, sem o que não pode haver salvação.”
Uma nota de rodapé oficial nos diz que o Concílio está aqui citando a Summa Theologica de São Tomás de Aquino. São Tomás pergunta: “Se a Eucaristia é necessária para a salvação?... a realidade do sacramento é a unidade do Corpo Místico, sem a qual não pode haver salvação; pois não há entrada na salvação fora da Igreja, assim como no tempo do Dilúvio não havia fora da Arca, que denota a Igreja, conforme 1 Pedro 3: 20,21” (Summa Theologica, III, q. 73, a. 3).
Assim, o Concílio Vaticano II reafirma claramente a doutrina tradicional de que “fora da Igreja não há salvação.” Infelizmente, a saúde do Padre Feeney estava tão debilitada nesta época, ele sofria de doença de Parkinson, que ele não foi capaz de estudar os documentos do Vaticano II por si mesmo, e só estava ciente dos abusos do Concílio pelos liberais. Se ele tivesse sido capaz de fazê-lo, ele teria se alegrado com a interpretação ortodoxa e oficial do Concílio sobre a “Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston,” e especialmente com a clara proclamação do Concílio sobre a doutrina tradicional da Igreja sobre a salvação pela qual ele havia sofrido tanto.
2. O DECRETO SOBRE O ECUMENISMO (Unitatis Redintegratio)
Permita-me começar repetindo uma citação de um padre amigo que fiz no início deste artigo: “[O Padre Feeney desempenhou] um papel involuntário ao levar a Igreja a um ponto de virada histórico e teológico – aquela carta do Papa Pio XII (Suprema haec sacra) registrando de maneira definitiva o reconhecimento de que pessoas de boa vontade fora da comunidade católica romana também podem alcançar a salvação por si mesmas… Em minha avaliação, este documento de Pio XII preparou o caminho para o Movimento Ecumênico na Igreja Católica e, de fato, para a teologia ecumênica declarada pelo Concílio Vaticano II.”
Parece-me que tal declaração se baseia em um completo mal-entendido sobre o que é o ecumenismo, então permita-me começar distinguindo entre o verdadeiro e o falso ecumenismo. Provavelmente, o resumo mais vívido do falso ecumenismo que já li é do sociólogo John Murray Cuddihy em seu No Offense: Civil Religion and Protestant Taste:
“A verdadeira civilidade… nunca pode ser temporária (se for, trata-se de conveniência, ou seja, um meio para um fim). A verdadeira civilidade, de fato, nunca define a outra pessoa ou religião em termos temporais, como uma etapa histórica no próprio desenvolvimento (por exemplo, o Judaísmo como uma preparação para o Cristianismo, como uma praeparatio evangelica). A visão da verdadeira civilidade tende a ser espacial e paratática: as religiões estão sentadas lado a lado, ou frente a frente na mesa (“a civilização do diálogo”), ou, se estão em movimento, marcham juntas até o fim dos tempos, ou, como na parábola do joio, crescem juntas até a colheita (o tropo legitimador de Murray [Pe. John Courtney Murray, S.J.]). A cultura cívica, assim, põe fim à etiqueta de transição da condescendência teológica. O papel de “preâmbulo” que os cristãos atribuem aos judeus é encerrado. A historiografia católica da Reforma como um “desvio equivocado” termina. Estamos todos aqui para ficar, não apenas de facto, mas de jure. Cada um de nós tem o direito de estar aqui como um-entre-muitos. Cada um aceita os outros não de maneira provisória e cautelosa, não com estipulações e ressalvas ocultas, e “por enquanto,” e “sujeito a alterações sem aviso prévio,” mas de forma permanente, incondicional, de todo o coração.” (John Murray Cuddihy, No Offense: Civil Religion and Protestant Taste, The Seabury Press, Nova York, 1978, p.124).
Acredito que todos concordarão que este não é o Movimento Ecumênico tal como o Concílio o entende. Aqui está a própria declaração do Concílio:
“Por «movimento ecuménico» entendem-se as actividades e iniciativas, que são suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos. Tais são: primeiro, todos os esforços para eliminar palavras, juízos e acções que, segundo a equidade e a verdade, não correspondem à condição dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles; depois, o «diálogo» estabelecido entre peritos competentes, em reuniões de cristãos das diversas Igrejas em Comunidades, organizadas em espírito religioso, em que cada qual explica mais profundamente a doutrina da sua Comunhão e apresenta com clareza as suas características. Com este diálogo, todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um apreço mais justo da doutrina e da vida de cada Comunhão. Então estas Comunhões conseguem também uma mais ampla colaboração em certas obrigações que a consciência cristã exige em vista do bem comum. E onde for possível, reúnem-se em oração unânime. Enfim, todos examinam a sua fidelidade à vontade de Cristo acerca da Igreja e, na medida da necessidade, levam vigorosamente por diante o trabalho de renovação e de reforma.
Desde que os fiéis da Igreja católica prudente e pacientemente trabalhem sob a vigilância dos pastores, tudo isto contribuirá para promover a equidade e a verdade, a concórdia e a colaboração, o espírito fraterno e a união. Assim, palmilhando este caminho, superando pouco a pouco os obstáculos que impedem a perfeita comunhão eclesiástica, todos os cristãos se congreguem numa única celebração da Eucaristia e na unidade de uma única Igreja. Esta unidade, desde o início Cristo a concedeu à Sua Igreja. Nós cremos que esta unidade subsiste indefectivelmente na Igreja católica e esperamos que cresça de dia para dia. até à consumação dos séculos.”
(“Decree on Ecumenism,” 1,4, Vatican Council II, Fr. Austin Flannery, O.P., The Liturgical Press, Collegeville, MN, 1975, pp.456,457.)
Depois de falar sobre trabalhar pela unidade cristã com os vários grupos não católicos, o decreto continua dizendo que isso de modo algum deve interferir nos esforços para converter os não católicos como indivíduos:
“Mas é evidente que o trabalho de preparação e reconciliação dos indivíduos que desejam a plena comunhão católica é por sua natureza distinto da empresa ecuménica: Entretanto, não existe nenhuma oposição entre as duas, pois ambas procedem da admirável Providencia divina.”
(“Decree on Ecumenism,” 1,4, Flannery, p.457.)
O “Decreto sobre o Ecumenismo” não deve ser separado do “Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja” Ad gentes divinitus. Um complementa o outro. Ad gentes declara:
“É, pois, bem de ver como a actividade missionária dimana intimamente da própria natureza da Igreja, cuja fé salvífica propaga, cuja unidade católica dilatando aperfeiçoa, em cuja apostolicidade se apoia, cujo afecto colegial de sua hierarquia exercita, cuja santidade testemunha, difunde e promove. É bem de ver também que a actividade missionária entre gentios difere tanto da actividade pastoral que se exerce com os fiéis, como das iniciativas pela reunificação dos cristãos. Contudo, ambas estas actividades andam estreitamente ligadas à actividade missionária da Igreja (35): pois a divisão dos cristãos prejudica a santíssima causa de pregar o Evangelho a toda a criatura (36) e fecha a muitos o acesso à fé. Por isso, por uma necessidade missionária, todos os baptizados são chamados a unir-se num rebanho para assim poderem dar um testemunho unânime de Cristo, seu Senhor, perante os gentios. Mas se ainda não podem, de completo acordo, dar testemunho duma só fé, é preciso que, ao menos, estejam animados de mútua estima e caridade.”
(“Decree on the Church’s Missionary Activity” 1,4, Flannery, pp.820,821.)
O verdadeiro ecumenismo, então, é aquele movimento que visa restaurar a unidade cristã e lida com igrejas e comunidades não católicas como grupos, mas, ao mesmo tempo, a Igreja não relaxa seus esforços para converter os não católicos como indivíduos. O Concílio Vaticano II expõe o que entende por falso ecumenismo:
“O modo e o método de formular a doutrina católica de forma alguma devem transformar-se em obstáculo por diálogo com os irmãos. É absolutamente necessário que toda a doutrina seja exposta com clareza. Nada tão alheio ao ecumenismo como aquele falso irenismo pelo qual a pureza da doutrina católica sobre detrimento e é obscurecido o seu sentido genuíno e certo.”
(“Decree on Ecumenism,” 2,11, Flannery, p.462.)
O Papa João Paulo II diria mais tarde:
“O ecumenismo não deve ser concebido em função de objectivos meramente humanos, sejam de natureza política ou de qualquer outro género. O ecumenismo não é compatível sequer com a confusão das fronteiras confessionais, esquecendo o conteúdo da fé que recebemos dos Apóstolos, ou admitindo indiscriminadamente os fiéis de outras comunidades eclesiais ã nossa celebração eucarística.” (Papa em Belize, L’Osservatore Romano, 2 de maio de 1983, p.10).
Este alerta do Concílio sobre o falso ecumenismo foi completamente endossado pelos observadores não católicos presentes. Um deles, Samuel McCrea Cavert, ex-Secretário Geral do Conselho Nacional de Igrejas, disse:
"Embora comprometa claramente a Igreja Católica com o diálogo e a ação ecumênicos, o Decreto adverte sabiamente contra 'uma falsa abordagem conciliatória'. Tal abordagem, afirma-se com razão, seria 'estranha ao espírito do ecumenismo'. Quando realmente tentamos ver as coisas pelos olhos do outro, podemos ser tentados a ser tão amáveis que as diferenças são obscurecidas ou borradas."
(The Documents of Vatican II, Pe. Walter Abbot, S.J., Editor Geral, The America Press, New York, 1966, p.369.)
Não deveria ser surpresa, então, ver o "Decreto sobre o Ecumenismo" fazer uma declaração forte e honesta sobre a necessidade da Igreja para a salvação:
“Contudo, os irmãos separados, quer os indivíduos quer as suas Comunidades e Igrejas, não gozam daquela unidade que Jesus quis prodigalizar a todos os que regenerou e convivificou num só corpo e numa vida nova e que a Sagrada Escritura e a venerável Tradição da Igreja professam. Porque só pela Igreja católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios salutares. Cremos também que o Senhor confiou todos os bens da nova Aliança ao único colégio apostólico, a cuja testa está Pedro, com o fim de constituir na terra um só corpo de Cristo. É necessário que a ele se incorporem plenamente todos os que de alguma forma pertencem ao Povo de Deus. Este Povo, durante a peregrinação terrena, ainda que sujeito ao pecado nos seus membros, cresce incessantemente em Cristo. É conduzido suavemente por Deus, segundo os Seus misteriosos desígnios, até que chegue, alegre, à total plenitude da glória eterna na celeste Jerusalém.”
(“Decree on Ecumenism,” 1,3, Flannery, p.456.)
3. A DECLARAÇÃO SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA (Dignitatis humanae)
Talvez surpreendentemente para alguns, entre as muitas declarações do Concílio sobre a necessidade da Igreja para a salvação, uma das mais fortes é encontrada na "Declaração sobre a Liberdade Religiosa":
“Em primeiro lugar, pois, afirma o sagrado Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo. Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: «Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, baptizando os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi» (Mt. 28, 19-20). Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar.
O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria forca, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte. Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coacção na sociedade civil, em nada afecta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo.”
(“Declaration on Religious Liberty,” 1,1; The Documents of Vatican II, Fr. Walter Abbot, S.J., General Editor, America Press, New York, 1966, pp.676,677.)
Esta citação é dos Documentos do Concílio Vaticano II, editados pelo Pe. Walter Abbot, S.J., que faz um excelente comentário sobre esta passagem em uma nota de rodapé:
"...Nenhum homem pode dizer da verdade religiosa que subsiste na Igreja: ‘Isso não me diz respeito.’ Uma vez dada por Cristo à Sua verdadeira Igreja, a verdadeira religião permanece o único caminho pelo qual todos os homens são obrigados a servir a Deus e salvar a si mesmos. Consequentemente, a liberdade religiosa não é um título de isenção da obrigação de ‘observar todas as coisas que vos tenho ordenado.’ Em suma, existe uma harmonia entre o dever do homem de obedecer livremente à verdade e seu direito ao livre exercício da religião na sociedade. O dever não diminui o direito, nem o direito diminui o dever.
"Esta franca profissão da fé católica no início da Declaração sobre a Liberdade Religiosa não está, de modo algum, em desacordo com o espírito ecumênico, assim como não está com a lealdade ao princípio da liberdade religiosa. Nem o espírito do ecumenismo nem o princípio da liberdade religiosa exigem que a Igreja se abstenha de declarar publicamente aquilo que acredita ser. As exigências da verdade não são mais opostas às exigências da liberdade do que às exigências do amor.”
(Abbot, Op. cit., n.3, pp.676,677.)
O Concílio então passa da liberdade absoluta da Igreja, que ela recebeu de Deus, para a liberdade religiosa de todos os homens, que se baseia na dignidade de cada pessoa humana.
“2. Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil.
De harmonia com própria dignidade, todos os homens, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre e por isso mesmo com responsabilidade pessoal, são levados pela própria natureza e também moralmente a procurar a verdade, antes de mais a que diz respeito à religião. Têm também a obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua vida segundo as suas exigências. Ora, os homens não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a própria natureza, a não ser que gozem ao mesmo tempo de liberdade psicológica e imunidade de coacção externa. O direito à liberdade religiosa não se funda, pois, na disposição subjectiva da pessoa, mas na sua própria natureza. Por esta razão, o direito a esta imunidade permanece ainda naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à verdade; e, desde que se guarde a justa ordem pública, o seu exercício não pode ser impedido.”
(“Declaration on Religious Freedom,” Op. cit. pp.679,680.)
O Padre Abbot acrescenta novamente uma nota explicando a harmonia que existe entre esta Declaração do Vaticano II e a Constituição dos Estados Unidos. Ele também adiciona algumas cautelas sobre o termo frequentemente usado de forma imprecisa “consciência”:
"É de notar que a palavra ‘consciência’, encontrada no texto latino, é usada em seu sentido genérico, sancionado pelo uso de ‘crenças’, ‘convicções’, ‘persuasões’. Assim, o descrente ou ateu reivindica com direitos legais essa imunidade contra coerção em questões religiosas. Deve-se ainda notar que, ao atribuir um conteúdo negativo ao direito à liberdade religiosa (isto é, ao torná-lo formalmente uma ‘liberdade de’ e não uma ‘liberdade para’), a Declaração está em harmonia com o sentido da Primeira Emenda da Constituição Americana. Ao garantir o livre exercício da religião, a Primeira Emenda garante ao cidadão americano imunidade contra qualquer coerção em questões religiosas. Nem a Declaração nem a Constituição Americana afirmam que um homem tem o direito de acreditar no que é falso ou de fazer o que é errado. Isso seria um absurdo moral. Nem o erro nem o mal podem ser objeto de um direito, apenas o que é verdadeiro e bom. No entanto, é verdadeiro e bom que um homem desfrute de liberdade contra coerção em questões religiosas.
“Isso nos leva à segunda questão, referente ao fundamento do direito. A razão pela qual todo homem pode reivindicar imunidade contra coerção em questões religiosas é precisamente sua inalienável dignidade como pessoa humana. Certamente, em questões religiosas, se em algum lugar, a pessoa livre é requisitada e tem o direito de agir segundo seu próprio julgamento e assumir a responsabilidade pessoal por sua ação ou omissão. As decisões religiosas de um homem, ou sua decisão contra a religião, são inescapavelmente suas. Ninguém mais pode tomá-las por ele, forçá-lo a tomar esta ou aquela decisão, ou impedi-lo de colocar sua decisão em prática, seja em privado ou publicamente, sozinho ou em companhia de outros. Em todos esses casos, a dignidade do homem seria diminuída devido à negação dessa responsabilidade inalienável por suas próprias decisões e ações, que é o complemento essencial de sua liberdade.
“Vale a pena notar que a Declaração não fundamenta o direito ao livre exercício da religião na ‘liberdade de consciência’. Em nenhum lugar essa expressão ocorre. E a Declaração, em nenhum momento, empresta sua autoridade à teoria para a qual a frase frequentemente é usada, ou seja, que eu tenho o direito de fazer o que minha consciência me diz para fazer, simplesmente porque minha consciência me diz para fazer. Essa é uma teoria perigosa. Seu perigo particular é o subjetivismo – a noção de que, no fim das contas, é minha consciência, e não a verdade objetiva, que determina o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso.”
(Abbot, Op. cit., 1,2, n.5, pp.678,679.)
Vimos que o Padre Rahner, depois de declarar que o Concílio Vaticano II ensinou que os ateus podiam ser salvos, disse: “…A única condição necessária que é reconhecida aqui é a necessidade de fidelidade e obediência à própria consciência pessoal do indivíduo.” Mas o Papa João Paulo II disse recentemente:
“Portanto, não é suficiente dizer ao homem: "segue sempre a tua consciência". É necessário acrescentar logo e sempre: "pergunta-te se a tua consciência diz o que é verdadeiro ou o que é falso, e procura com denodo conhecer a verdade". Se não se fizesse esta necessária precisação, o homem correria o perigo de encontrar na sua consciência uma força destruidora da sua verdadeira humanidade, em vez de um lugar santo onde Deus lhe revela o seu verdadeiro bem.
É necessário "formar" a própria consciência. Neste empenho, o crente sabe que tem um particular auxílio da doutrina da Igreja. "Com efeito, por vontade de Cristo, a igreja Católica é a Mestra, da verdade, e a sua missão é anunciar e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declarar e confirmar, com a sua autoridade, os princípios da ordem moral que fluem da própria natureza humana (Dignitatis humanae, 14).”
(Dignitatis Humanae, 14, L’Osservatore Romano, August 18, 1983.)
O Concílio continua dizendo que a liberdade religiosa não é apenas a prerrogativa de cada indivíduo, mas também dos indivíduos quando atuam em grupos nas várias igrejas e comunidades não católicas:
“4. A liberdade ou imunidade de coacção em matéria religiosa, que compete às pessoas tomadas individualmente, também lhes deve ser reconhecida quando actuam em conjunto. Com efeito, as comunidades religiosas são exigidas pela natureza social tanto do homem como da própria religião.
Por conseguinte, desde que não se violem as justas exigências da ordem pública, deve-se em justiça a tais comunidades a imunidade que lhes permita regerem-se segundo as suas próprias normas, prestarem culto público ao Ser supremo, ajudarem os seus membros no exercício da vida religiosa e sustentarem-nos com o ensino e promoverem, enfim, instituições em que os membros cooperem na orientação da própria vida segundo os seus princípios religiosos.”
(“Declaration on Religious Freedom,”” 1,4; Abbot, Op. cit., pp.681,682.)
O Padre Abbot, em uma nota, novamente distingue cuidadosamente entre a liberdade religiosa reivindicada pela Igreja Católica como um direito divino e a liberdade religiosa das igrejas e comunidades não católicas, que se baseia na dignidade da pessoa humana:
“As liberdades aqui listadas são aquelas que a Igreja Católica reivindica para si. A Declaração também as reivindica para todas as igrejas e comunidades religiosas. Para evitar mal-entendidos, no entanto, é necessário lembrar aqui a distinção entre o conteúdo ou objeto do direito e seu fundamento. O conteúdo ou objeto sempre permanece a liberdade de coerção no que concerne à crença religiosa, ao culto, à prática ou observância, e ao testemunho público. Portanto, o conteúdo do direito é o mesmo tanto para a Igreja Católica quanto para outros corpos religiosos. Nesse sentido, a Igreja não reivindica para si nada que não reivindique também para eles. A questão é diferente, entretanto, no que diz respeito ao fundamento do direito. A Igreja Católica reivindica liberdade de interferência coercitiva em seu ministério e vida com base no mandato divino que lhe foi conferido pelo próprio Cristo. É doutrina católica que nenhuma outra igreja ou comunidade pode reivindicar possuir esse mandato em toda a sua plenitude. Nesse sentido, a liberdade da Igreja é única, própria somente a ela, devido ao seu fundamento. No caso de outras comunidades religiosas, o fundamento do direito é a dignidade da pessoa humana, que exige que os homens sejam mantidos livres de coerção quando atuam em comunidade, reunidos em igrejas, assim como quando atuam individualmente.” (Abbot, Op. cit., 1,4, n.9, p.682.)
Por fim, em uma conclusão que os liberais ignoram completamente, para que os católicos não se tornem negligentes em seus deveres para com o próximo, que, sem dúvida, são livres de coerção2, o Concílio exorta os católicos, com toda caridade e coragem, a professar e espalhar sua fé:
“14. Para obedecer ao mandato divino «ensinai todas as gentes» (Mt. 28, 19), deve a Igreja Católica trabalhar com muita diligência «para que a palavra de Deus se propague rapidamente e seja glorificada» (2 Tess. 3, 1).
A Igreja pede, por isso, com instância que, antes de mais, os seus filhos façam «preces, orações, súplicas, acções de graças por todos os homens... Pois é uma coisa boa e agradável a Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tim. 2, 1-4).
Os fiéis, por sua vez, para formarem a sua própria consciência, devem atender diligentemente à doutrina sagrada e certa da Igreja (36). Pois, por vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da verdade, e tem por encargo dar a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declara e confirma, com a sua autoridade, os princípios de ordem moral que dimanam da natureza humana. Além disso, os cristãos, procedendo cordatamente com aqueles que estão fora da Igreja, procurem «no Espírito Santo, com uma caridade não fingida e com a palavra da verdade» (2 Cor. 6, 6-7), difundir com desassombro e fortaleza apostólica a luz da vida, até à efusão do sangue.
Com efeito, o discípulo tem para com Cristo seu mestre o grave dever de conhecer cada vez mais plenamente a verdade d'Ele recebida, de a anunciar fielmente e defender corajosamente postos de parte os meios contrários ao espírito evangélico. Ao mesmo tempo, o amor de Cristo incita-o a agir com amor, prudência e paciência para com os homens que se encontram no erro ou na ignorância relativamente à fé. Deve-se, pois, atender quer aos deveres para com Cristo, Verbo vivificador, o qual deve ser anunciado, quer aos direitos da pessoa humana, quer à medida da graça que Deus, por meio de Cristo, concedeu ao homem, convidado a receber e a professar livremente a fé.”
(“Declaration on Religious Freedom,” 2,14, Idem, pp.694,695.)
Não posso resistir a comentar, neste ponto, sobre o nosso dever para com o próximo de professar a Fé. Se essa profissão omitir ou enfraquecer a necessidade da Igreja para a salvação, será inútil ou, como Orestes Brownson coloca em seu vívido estilo ianque:
"Não pode haver erro mais fatal do que suavizar, liberalizar ou tornar mais flexível este terrível dogma: 'Fora da Igreja não há salvação'... Se quisermos converter protestantes e infiéis, devemos pregar o dogma nu em toda a sua rigorosidade. Dê-lhes o menor pretexto, ou o que pareça ser, não para você, mas para eles; - o menor pretexto para sustentar uma esperança de salvação sem estar na Igreja ou realmente reconciliado com ela pelo sacramento da penitência, e todos os argumentos que você possa lhes dirigir para provar a necessidade de estar na Igreja para ser salvo não terão mais efeito sobre eles do que a chuva nas costas de um pato."
("Answer to Objection," Brownson’s Quarterly Review, julho de 1874, pp. 413, 414; Works, Vol. XX.)
4. DECRETO SOBRE A ATIVIDADE MISSIONÁRIA DA IGREJA (Ad gentes dvinitus)
Joseph Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em um discurso aos Bispos do Chile, lamentou o dano que estava sendo causado ao esforço missionário da Igreja por interpretações errôneas do Concílio Vaticano II:
“Nos movimentos espirituais da era pós-conciliar, não há a menor dúvida de que, frequentemente, houve um esquecimento ou até mesmo uma supressão da questão da verdade: aqui talvez enfrentemos o problema crucial para a teologia e para o trabalho pastoral hoje.
A “verdade” é considerada uma reivindicação excessivamente exaltada, um “triunfalismo” que não pode mais ser permitido. Vê-se claramente essa atitude na crise que aflige o ideal missionário e a prática missionária. Se não apontamos para a verdade ao anunciar nossa fé, e se essa verdade já não é essencial para a salvação do homem, então as missões perdem seu significado. De fato, a conclusão foi tirada, e foi tirada hoje, de que no futuro basta apenas buscar que os cristãos sejam bons cristãos, os muçulmanos bons muçulmanos, os hindus bons hindus e assim por diante.”
(Address given in Santiago, Chile, July 13, 1988. Appeared in the July 30th - August 5th edition of Il Sabato; Translated into English by Farley Clinton, The Wanderer, September 8, 1988.)
Longe desse espírito liberal corrosivo, o Decreto Ad Gentes começa afirmando que a atividade missionária é essencial à própria natureza da Igreja. Sem missões, sem Igreja!
“5. O Senhor Jesus, logo desde o princípio «chamou a Si alguns a quem Ele quis, e escolheu doze para andarem com Ele e para -os mandar a pregar» (Mc. 3,13). Os Apóstolos foram assim a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia. Depois, realizados já definitivamente em Si, pela sua morte e ressurreição, os mistérios da nossa salvação e da renovação do universo, o Senhor, com todo o poder que adquiriu no céu e na terra, antes de subir ao Céu (30) fundou a sua Igreja como sacramento de salvação e enviou os seus Apóstolos a todo o mundo tal qual Ele também tinha sido enviado pelo Pai, dando-lhes este mandato: «Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo quanto vos prescrevi» (Mt. 28, 19-20). «Ide por todo o mundo, proclamai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado, será salvo; mas quem não acreditar, será condenado» (Mc. 16,15 ss.). Daí vem à Igreja o dever de propagar a fé e a salvação de Cristo, tanto em virtude do expresso mandamento que dos Apóstolos herdou a Ordem dos Bispos ajudada pelos presbíteros em união com o sucessor de Pedro e sumo pastor da Igreja, como em virtude da vida comunicada aos seus membros por Cristo, «do qual o corpo todo inteiro bem ajustado e coeso por toda a espécie de junturas que o alimentam, com a acção proporcionada a cada membro, realiza o seu crescimento em ordem à própria edificação na caridade» (Ef. 4,16). A missão da Igreja realiza-se pois, mediante a actividade pela qual, obedecendo ao mandamento de Cristo e movida pela graça e pela caridade do Espírito Santo, ela se torna actual e plenamente presente a todos os homens ou povos para os conduzir à fé, liberdade e paz de Cristo, não só pelo exemplo de vida e pela pregação mas também pelos sacramentos e pelos restantes meios da graça, de tal forma que lhes fique bem aberto caminho livre e seguro para participarem plenamente no mistério de Cristo.”
(Ad gentes, 1:5, Vatican Council II, Fr. Austin Flannery, O.P., The Liturgical Press, Collegeville, MN, 1975, pp.817,818.)
O Concílio então discute a atividade missionária em seu uso mais popular de “missões estrangeiras”:
“O nome de «missões» dá-se geralmente àquelas actividades características com que os pregoeiros do Evangelho, indo pelo mundo inteiro enviados pela Igreja, realizam o encargo de pregar o Evangelho e de implantar a mesma Igreja entre os povos ou grupos que ainda não crêem em Cristo. Essas «missões» são levadas a efeito pela actividade missionária e exercem-se ordinàriamente em certos territórios reconhecidos pela Santa Sé. O fim próprio desta actividade missionária é a evangelização e a implantação da Igreja nos povos ou grupos em que ainda não está radicada (34). Assim, a partir da semente da palavra de Deus, é necessário que se desenvolvam por toda a parte igrejas autóctones particulares, dotadas de forças próprias e maturidade, com hierarquia própria unida ao povo fiel, suficientemente providas de meios proporcionados a uma vida cristã plena, contribuindo para o bem da Igreja universal. O meio principal desta implantação é a pregação do Evangelho de Jesus Cristo. Para o anunciar, enviou o Senhor pelo mundo inteiro os seus discípulos, a fim de que os homens, uma vez renascidos pela palavra de Deus, fossem agregados pelo Baptismo à Igreja, a qual, como corpo do Verbo encarnado, se nutre e vive da palavra de Deus e do pão eucarístico.”
(Ad gentes, 1,6, Flannery, Op. Cit., p.819.)
O Concílio então distingue a atividade missionária do cuidado pastoral dos fiéis e do Movimento Ecumênico:
“É, pois, bem de ver como a actividade missionária dimana intimamente da própria natureza da Igreja, cuja fé salvífica propaga, cuja unidade católica dilatando aperfeiçoa, em cuja apostolicidade se apoia, cujo afecto colegial de sua hierarquia exercita, cuja santidade testemunha, difunde e promove. É bem de ver também que a actividade missionária entre gentios difere tanto da actividade pastoral que se exerce com os fiéis, como das iniciativas pela reunificação dos cristãos. Contudo, ambas estas actividades andam estreitamente ligadas à actividade missionária da Igreja: pois a divisão dos cristãos prejudica a santíssima causa de pregar o Evangelho a toda a criatura e fecha a muitos o acesso à fé. Por isso, por uma necessidade missionária, todos os baptizados são chamados a unir-se num rebanho para assim poderem dar um testemunho unânime de Cristo, seu Senhor, perante os gentios. Mas se ainda não podem, de completo acordo, dar testemunho duma só fé, é preciso que, ao menos, estejam animados de mútua estima e caridade.”
(Ad gentes, 1:6; Flannery, pp.820,821.)
O Movimento Ecumênico não pôs fim ao papel missionário da Igreja, como alguns liberais parecem pensar, mas, pelo contrário, porque a Igreja é necessária para a salvação, seu trabalho missionário será sempre essencial:
“7. A razão desta actividade missionária vem da vontade de Deus, que «quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Ora há um só Deus, e um só que é mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, que se deu a si mesmo como preço de resgate por todos» (l Tim. 2, 4-6), «e não há salvação em nenhum outro» (Act. 4,12). Portanto, é preciso que todos se convertam a Cristo conhecido pela pregação da Igreja e que sejam incorporados, pelo Baptismo, a Ele e à Igreja, seu corpo. O próprio Cristo, aliás, ao inculcar por palavras expressas a necessidade da fé e do Baptismo, confirmou também, por isso mesmo, a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Baptismo, que é como que a porta de entrada. Por isso, não se poderiam salvar aqueles que, não ignorando que Deus fundou por intermédio de Jesus Cristo a Igreja católica como necessária, não quisessem, apesar disso, entrar nela ou nela perseverar». Por isso também, embora Deus, por caminhos que só Ele sabe, possa conduzir à fé, sem a qual é impossível ser-se-Lhe agradável, os homens que ignoram o Evangelho sem culpa sua, incumbem à Igreja, apesar de tudo, a obrigação e o sagrado direito de evangelizar. Daí vem que a actividade missionária conserve ainda hoje e haja de conservar sempre toda a sua eficácia e a sua necessidade.”
(Ad gentes, 1,7; Flannery, p.821.)
A partir deste breve olhar sobre alguns trechos de apenas quatro dos documentos do Concílio, creio que qualquer pessoa honesta admitirá que o Concílio Vaticano II deu grande ênfase à necessidade da Igreja Católica para a salvação.
Devo mencionar de passagem que algumas pessoas pensam que há duas notas de rodapé oficiais nos documentos do Vaticano II referindo-se à "Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston", mas há apenas uma. Acho que elas devem estar se referindo a uma nota na edição do Padre Abade de The Documents of Vatican II, na “Decretação sobre o Ecumenismo”, página 346, nota 18. Mas esta não é uma nota oficial, mas uma nota do Padre Abade. Esta é uma das fraquezas desta edição, que não distingue entre as notas do Padre Abade e as notas oficiais do Vaticano II. Veja a edição do Padre Flannery, página 456, que dá apenas as notas oficiais.
No texto original está “são livres para professar qualquer religião”.
Eu troquei a expressão para não haver confusão sobre a diferença entre liberdade de coerção - que é a defendida no concílio - e liberdade/permissão moral (um ‘direito’ ao erro), que o próprio autor é contra (além do parágrafo 2108 no Catecismo da Igreja Católica).